Lembro que dos 16 aos 22 anos, eu tinha um grupo de amigos que era realmente fascinado pelas Escrituras. Lembro-me de virarmos as noites nos finais de semana conversando sobre a Bíblia. Falando sobre textos polêmicos dividindo pontos de vista, compartilhando experiências conversando sobre Deus. A Bíblia era intrigante, provocativa, inspirativa, cativante.
Havia vários pontos de concordância e discordância. Nossas experiências e histórias eram diferentes. Alguns haviam crescido em lares cristãos e outros não, havíamos passado por igrejas tradicionais e pentecostais, grandes e pequenas e, isso trazia uma variedade incrível de crenças e doutrinas. Muitas vezes, nos exaltávamos ao compartilhar e tentar defender nosso posicionamento, mas havia um sincero respeito mútuo e um desejo comum e verdadeiro – chegarmos ao pleno conhecimento d’Ele (Ef 1.17).
Um desses meus amigos, chamado Paulo André, mora na Suíça. Ainda temos várias discussões” via Skype ou Whatsapp. Toda vez que ele vem ao Brasil nos encontramos, para conversar sobre as mais diversas questões bíblicas. Nós temos opiniões bem diferentes sobre muitos temas e, por isso, acabamos crescendo muito juntos. Muitas vezes, os ânimos dos dois sanguíneos se elevam e, com certeza, se alguém nos vir, pensará que estamos nos desentendendo. Mas essas discussões só nos tornam mais amigos e crescemos em amor um pelo outro. Na última vez em que ele esteve no Brasil, passamos um dia juntos e quando sua esposa veio buscá-lo no final do dia, ela parou o carro, olhou disse: “E daí meninos? Brigaram muito hoje?” E respondemos: “Claro! É para isso que nos encontramos”.
Em uma discussão bíblica sadia, os dois lados sempre saem vencedores. Quando há um desejo genuíno em se discutir para chegar ao entendimento da Verdade todos ganham, ninguém perde. Se você estiver certo em suas convicções, as fortalecerá ainda mais ao ter de defendê-las diante de argumentos contrários. Se estiver errado em suas convicções, descobrirá onde está errado e será iluminado pela Verdade. Todos ganham! Eu vivi essa experiência, muitas e muitas vezes.
Tive grandes revelações bíblicas enquanto comia pizza e conversava com meus amigos. Enquanto oferecíamos nosso trabalho braçal para algum evento na igreja. Enquanto dirigíamos noite adentro em direção à praia, depois nos sentávamos na areia, conversando até ver o sol despontar no horizonte. depois de vermos o espetáculo do sol nascente, comprávamos alguns pães, queijo, presunto, refrigerantes e fazíamos sanduíches sentados no calçadão beira-mar. Depois de comermos, voltávamos para Curitiba ainda conversando sobre as coisas de Deus. Como eram preciosos aqueles momentos, guardarei-os para sempre na memória.
Infelizmente, como pastor de jovens, sinto em dizer vejo isso acontecer muito pouco hoje. Existe um desinteresse crônico pelas Escrituras. Os poucos que parecem demonstrar interesse, a ponto de dedicarem a isso horas de estudo, vão para o lado menos proveitoso que se poderia escolher. Passando a discutir sobre questões que são intermináveis e de pouco proveito. Paulo adverte a Timóteo e Tito sobre isso também: Em sua primeira carta a Timóteo, Paulo começou pedindo para que ele ficasse em Éfeso e não o acompanhasse em sua viagem para a Macedônia. Timóteo deveria ficar e ordenar que certas pessoas parassem de ensinar falsas doutrinas. Ele escreve também que essas pessoas se apegavam à discussões intermináveis, que só causavam controvérsias em vez de promover a obra de Deus e a fé. Então, Paulo defende:
“O objetivo desta instrução é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera. Alguns se desviaram dessas coisas, voltando-se para discussões inúteis, querendo ser mestres da lei, quando não compreendem nem o que dizem nem as coisas acerca das quais fazem afirmações tão categóricas"
Paulo relaciona as falsas doutrinas à essas discussões inúteis e intermináveis. Ele aponta que as pessoas que traziam essas falsas doutrinas tinham a pretensão de serem mestras Lei. Isso nos leva a crer que havia um pano de fundo judaico nas falsas doutrinas. No versículo 4, Paulo coloca que esses falsos mestres gostavam de fábulas e genealogias intermináveis. Isso também parece ser uma referência à tendências judaizantes.
Existem fortes indícios de que Paulo estivesse se referindo a heresias ligadas ao gnosticismo, que era uma mistura de elementos do judaísmo com a filosofia grega.
Os gregos amavam os pensamentos longos, abstratos e especulativos. O gnosticismo parece ter começado abordando questões como a origem do mal, do pecado e do sofrimento. Abordando questões como: “Se Deus é totalmente bom, poderia Ele ter criado o mal? Se Deus não criou o mal, como ele entrou no mundo?”
Esses pensamentos gnósticos só começaram no primeiro século, mas viriam a produzir grande dano no meio da Igreja a partir do segundo século. O desdobramento de vários pensamentos levariam os gnósticos a pregarem que o corpo é de todo mal e, mesmo entre eles divergiam em como lidar com essa iniquidade da matéria.
Alguns foram para o ascetismo, dizendo que o corpo era mau e precisava ser subjugado. Então criaram leis que proibiam vários alimentos e até o casamento (1 Tm 4.3).
Outros foram para a licenciosidade. Se o corpo é mau, não importa o que façamos com ele, o que importa é o espírito. Assim, o homem deveria ceder a todos os desejos pecaminosos do corpo, mas edificar seu espírito. E isso levou os gnósticos a um alto nível de imoralidade.
Não diferente do que acontece com outras falsas doutrinas, ela provocava grandes discussões. O homem consegue um grande prazer ao se envolver em debates, discussões e discórdias. Tudo que há de ruim em nossa herança adâmica – orgulho, arrogância, altivez, ira, soberba, vaidade, um verdadeiro festival de carnalidade – é aflorado neste tipo de discussão.
Citando William Barclay, Hernandes Dias Lopes apresenta uma lista de 5 características dos falsos mestres e suas doutrinas:
1) O desejo de buscar novidades:
precisamos entender que a verdade não muda, o que muda são os métodos, a forma de apresentar essa verdade;
2) Exaltação da mente em detrimento do coração:
as falsas doutrinas davam a ideia de um intelectualismo esnobe;
3) Mais interesse em discussão que em ação:
eles se envolviam em discussões frívolas e abandonavam a prática da fé;
4) Mais atenção à arrogância que à humanidade:
o desejo dos falsos mestres é ensinar em vez de aprender;
5) Apego ao dogmatismo sem o conhecimento:
eles nada sabem a respeito do que falam.
Infelizmente, principalmente entre os jovens, muitos dos que vejo se dedicarem a estudar e conhecer as Escrituras acabam seduzidos por trilhar esse tipo de caminho. Facilmente se tornam teólogos praticantes e cristãos não praticantes. São seduzidos pelas discussões inúteis e, querendo ser mestres fazem afirmações categóricas sobre coisas das quais nada sabem.
Essas discussões não promovem a glória de Deus, não edificam o corpo, apenas exaltam a vaidade e a altivez. Esse é um perigo tão sutil e prejudicial à legítima defesa da Verdade, que Paulo insiste em alertar Timóteo e Tito, repetidamente, em suas cartas:
"Deixem de dar atenção a mitos e genealogias intermináveis, que causam controvérsias em vez de promover a obra de Deus"
Rejeite as fábulas profanas e tolas e exercite-se na piedade (1 Tm 4.7).
Quem rejeita a sã Doutrina é orgulhoso e nada entende. Esse tal mostra interesse por controvérsias e contendas acerca de palavras, que resultam em inveja, brigas, difamações, suspeitas malignas e atritos constantes (1 Tm 6.3-5).
Evite conversas inúteis e profanas e as ideias contraditórias do que é falsamente chamado de conhecimento, alguns desviaram-se fé por isso (I Tm 6.20-21).
Não se envolvam em discussões acerca de palavras, isso não traz proveito e só serve para perverter os ouvintes (2 Tm 2.14).
Evite conversas inúteis e profanas, pois os que se dão a isso prosseguem cada vez mais para a impiedade. O ensino deles se alastra como câncer (2 Tm 2.16-17).
Evite controvérsias tolas e inúteis, pois você sabe que acabam em brigas (2 Tm 2.23).
Evite controvérsias tolas, genealogias, discussões e contendas a respeito da Lei, porque estas coisas são inúteis e sem valor. Quanto àquele que provoca divisões, advirta-o uma primeira e uma segunda vez. Depois disto, rejeite-o (Tt 3.9-10).
É impressionante o fato de alguns se aprofundarem tanto em temas inúteis e deixarem de observar orientações claras e objetivas como essas que Paulo dá a Timóteo e Tito. Agostinho afirmou: “Nossa fé é alimentada pelo que está claro nas Escrituras e testada pelo que está obscuro”. É impressionante como algumas pessoas querem ser profundas em coisas nas quais a Bíblia é rasa e, são rasas em coisas nas quais a Bíblia é profunda. São capazes de se aprofundar e discutir, horas e horas, temas sobre os quais não existem elementos bíblicos suficientes para uma conclusão definitiva, mas se perdem em princípios básicos e elementares da fé.
Existe uma raiz comum para todos esses debates controversos, inúteis e intermináveis: O selo de Satanás – orgulho. Como disse C. S. Lewis: “O que quero deixar claro, é que o orgulho é essencialmente competitivo -por sua própria natureza (..) O prazer do orgulho não está em se ter algo, mas somente em se ter mais que a pessoa ao lado. Dizemos que uma pessoa é orgulhosa por ser rica, inteligente ou bonita, mas isso não é verdade. As pessoas são orgulhosas por serem mais ricas, mais inteligentes e mais bonitas que as outras. Se todos fossem igualmente ricos, inteligentes e bonitos, não haveria do que se orgulhar. É a comparação que torna uma pessoa orgulhosa: o prazer de estar acima do restante dos seres. Eliminando o elemento de competição, o orgulho se vai”
Como eu afirmei anteriormente, as pessoas que se deixam seduzir por esse tipo de discussão não estão interessadas em chegar ao conhecimento da Verdade. Elas querem simplesmente mostrar que estão certas e as demais erradas. Mesmo que alguma verdade fosse exposta em suas discussões, suas mentes estariam obscurecidas pelo obstinado desejo de provarem sua superioridade intelectual. O que mais me entristece em tudo isso é o desperdício. Desperdício intelectual, desperdício de esforço, de tempo, de energia em algo que não produz vida.
Quando os 12 discípulos foram questionados por Jesus, sobre se o abandonariam como outros fizeram, Pedro respondeu:
"Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras de vida eterna."
Quando os dois discípulos que foram abordados por Jesus no caminho para Emaús, têm as escamas de seus olhos retiradas e percebem que quem lhes falava era O Cristo, eles dizem um ao outro:
"Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras?"
A exposição correta das Escrituras deve fazer o nosso coração arder, queimar! Ela deve nos atravessar como uma flecha inflamada que acerta seu alvo. Deve gerar vida, alegria, arrependimento, quebrantamento – amor.
Deve nos levar a sorrir e derramar lágrimas ao mesmo tempo. Deve nos levar a olhar o próximo com amor e misericórdia e olhar para nós mesmos como recebedores imerecidos de uma graça, sem a qual seríamos dignos apenas de condenação eterna. Quando a Verdade é exposta da forma correta, ela só pode gerar em nós humildade, não deixando espaço para o orgulho.
Como disse William Law:
“Pense como é vergonhosa a natureza do pecado, como é grande a reparação necessária para purificar-nos da culpa. Exigiu-se nada menos que o sofrimento e a morte do Filho de Deus. Há espaço para orgulho enquanto partilhamos de uma natureza como a nossa?”
Texto extraído do livro “Valentes pela Verdade”
Autor: Farley Labatut. Farley é pastor na Comunidade Alcance de Curitiba. Além de servir na igreja local, liderando os ministérios de ensino e de jovens, ele tem se dedicado a servir o Reino. Pregador e conferencista, junto com sua esposa Danielle Labatut, lidera o Ministério Valentes Pela Verdade, com o intuito de proclamar, ensinar e defender as Escrituras. O casal tem 3 filhos, Calebe, Nicole e Louise.