Por duas vezes, em Sua prestação de contas, no capítulo 17 de João, Jesus refere-Se aos Seus discípulos como propriedade do Pai:
“Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a tua palavra… É por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus”
Esta percepção é fundamental no exercício de um discipulado saudável. Na ótica de Jesus, liderar homens não tem a ver com dominar sobre eles, mas com guiá-los à maturidade para que prosperem no plano de Deus.
O espírito de manipulação é como uma praga sempre ameaçadora à vida da igreja. Ela só precisa de uma brecha para estabelecer-se. E a única forma de contê-la é sustentar e transferir adiante a ideia de que o modelo mais nobre de liderança é a liderança servil.
Ainda que digamos “Fulano é meu discípulo”, precisamos guardar a consciência de que, na verdade, formar vidas é um exercício de mordomia, ou seja, lideramos pessoas para ajudá-las a cumprir a vontade do Pai, e não a nossa.
Ao dizer “aqueles que me deste… porque são teus”, Jesus estava na verdade devolvendo talentos, agora multiplicados, ao Seu Senhor. Essa é a grande missão do discipulador.
Quando assumimos que as vidas que Deus nos dá a discipular são propriedade Dele, obrigamo-nos a valorizar tais pessoas. Não importa que características tragam, se nos agradam ou não com seu jeito, é nosso papel assumí-las
como preciosidades, uma vez que reconhecemos a quem, de fato, elas pertencem.
VALORIZANDO AS PESSOAS PELO QUE SÃO
De vez em quando somos surpreendidos com a notícia de que um objeto qualquer foi arrematado num leilão por
uma verdadeira fortuna. O que justifica tanto valor, se um exatamente igual ou até melhor pode ser comprado a preço razoável, na loja da esquina? Quase sempre a supervalorização daquele item se deve à pessoa famosa a quem ele pertenceu. Uma chuteira do Pelé, uma guitarra do Elvis Presley ou uma caneta do Nelson Mandela sempre valerão mais do que o similar que se compra no mercado. Agora, aqui não estamos falando de objetos e nem de donos famosos. No discipulado, tratamos com vidas humanas cuja propriedade pertence a Deus, adquiridas pelo precioso sangue da Cruz!
Valorizar as pessoas pelo que elas “são”, e não pelo que “parecem ser” , é uma marca dos grandes líderes! Quando vemos Davi dispondo-se a investir num bando de marginais, na caverna de Adulão, podemos achar que ele entrou numa barca furada. O currículo daqueles elementos não era nada inspirador. Diz a Bíblia:
“Ajuntaram-se a ele todos os homens que se achavam em aperto, e todo homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele se fez chefe deles; e eram com ele uns quatrocentos homens”
Entretanto, um líder com visão de Deus consegue ver a preciosidade das pessoas que o Senhor lhe dá, mesmo que elas estejam em estado bruto. Foi dali que Davi forjou os valentes do exército que se tornaria a base de sustentação do seu reino.
Com Jesus não foi diferente. Os doze que Ele assumiu publicamente como Sua equipe de apóstolos não tinham nenhum pedigree. Não foram recrutados nas escolas rabínicas de Jerusalém e nem eram líderes reconhecidos. Chegaram à Sua presença desqualificados, sem nenhuma experiência espiritual e com uma mentalidade a ser completamente mudada. Além disso, não eram o que se pode dizer de uma equipe harmoniosa e coesa. Havia ali gente que falava muito, e gente que nem se expressava. De zelote ultranacionalista a cobrador de impostos, “traidor da nação”; de quase todo antagonismo se podia encontrar naquele grupo.
ASSUMINDO SEUS DISCÍPULOS
Por que Jesus os assumiu como equipe? Porque entendeu, em Seu coração, serem eles os homens que o Pai Lhe estava dando para formar.
Um verdadeiro discipulador normalmente não escolhe seus discípulos; apenas os assume! Para não dizer que essa
afirmação é absoluta, tenho que admitir que a escolha se baseia, apenas, na resposta afirmativa dessas pessoas ao convite para o discipulado. Jesus simplesmente encontrou homens, na rota por onde estava pregando, desafiou-os à fé e lançou sobre eles o convite para segui-Lo. Os que disseram “sim”, Ele assumiu como discípulos que o Pai Lhe deu.
A segunda implicação de entendermos que os nossos discípulos são propriedade de Deus é que essa consciência nos impedirá de manipulá-los ao nosso bel prazer. Se são de Deus, Ele mesmo tem um plano para suas vidas e é nossa
obrigação discerni-lo e ajudá-los a caminhar nessa direção.
Discípulos servem aos seus líderes; não há o que discutir. Isso faz parte do processo de treinamento e do caminho de prosperidade para suas vidas. Josué ficou conhecido como “o servidor de Moisés’,’ antes de se tornar seu sucessor (conf. Números 11:28). Eliseu “deitava água nas mãos de Elias” (conf II Reis 3:11), antes de herdar porção dobrada da sua unção. A essência do discipulado, entretanto, não é forjar homens que me sirvam, mas homens que sirvam a Deus comigo e para muito além de mim.
Líderes mal intencionados ou mal preparados podem usar seus liderados para satisfação dos próprios caprichos,
vaidades ou interesses e isso é uma usurpação, diante de Deus.
LÍDER E NÃO ÍDOLO
Voltemos ao exemplo de Davi. O investimento que ele fez na vida daqueles homens de Adulão mudou radicalmente suas histórias e levou-os a um lugar de significado. A resposta de seus corações ao líder que não apenas se dedicou a ensiná-los, mas se ofereceu como modelo para suas vidas, foi gratidão e amor à toda prova. Muitas vezes, eles arriscaram a própria pele, lutando em prol do reino de Davi, que, em última instância, era o seu ministério.
Quando, porém, a paixão desses homens por seu líder levou-os às raias do exagero, Davi brecou-os. No episódio do poço de Belém, quando três deles irromperam pelo arraial dos filisteus, arriscando-se em busca de um vaso d’água, tentando satisfazer a um suspiro de seu líder, Davi não aceitou tamanho sacrifício, mas decidiu oferecer aquela água como oferta de libação ao Senhor, dizendo:
“Longe de mim, ó Senhor, fazer tal coisa; beberia eu o sangue dos homens que lá foram com perigo de sua vida?”
Eis aí o exemplo de um líder que sabia os seus limites e guardava a consciência de que aqueles que o serviam não
eram propriedade sua, mas de Deus. Ele não queria ser um ídolo em suas vidas, mas apenas guiá-los, levando-os a cumprirem sua missão na vida!
Outra implicação da consciência de que discípulos são de Deus e não nossos é a convicção de que prestaremos contas do que fizermos com eles. Era isso que Jesus estava fazendo em João 17 e é isso que faremos um dia, quando estivermos diante do Senhor.
Cabe-nos, portanto, discernir o propósito de Deus para suas vidas e ajudá-los a cumprir sua carreira, adestrando-os da maneira correta, a fim de devolvê-los, não mais como matéria bruta, mas como pessoas buriladas na fé, prontas para frutificarem.
UMA JORNADA DE TRANSFORMAÇÃO
Numa das primeiras conversas que teve com Pedro, Jesus fez um diagnóstico de seu caráter e estabeleceu um alvo para o trabalho que faria com aquele homem. A Bíblia conta:
“Olhando Jesus para ele, disse: Tu és Simão, o filho de João; tu serás chamado Cefas, que quer dizer Pedro”
O nome “Simão” significa “caniço” ou “alguém que ouve”. Nada melhor para descrever a personalidade daquele pescador galileu. Ele era absolutamente instável, levado por qualquer voz ou vento de circunstância. Entretanto, Jesus assumiu, através do discipulado, conduzi-lo à condição de homem firme, confiável. Simão se tornaria Pedro ou Cefas, que significa “pedra”. Esse era o caráter que o Mestre queria desenvolver nele. A jornada de transformação foi árdua.
Jesus teve que repreendê-lo muitas vezes e encorajá-lo outras tantas. Ele era capaz de, num momento, ser usado pelo Espírito e, no momento seguinte, deixar-se manipular por Satanás. Tinha ímpeto para andar sobre as águas, mas na sequência começar a afundar pela ação da dúvida. Podia sacar uma espada e cortar a orelha de homem e, horas de
pois, negar que conhecia Jesus, tremendo de medo diante de uma simples criada… Um verdadeiro caniço agitado pelo vento!
Quem o vê, depois, intrépido em Pentecostes, pregando a três mil pessoas de uma só vez ou, mais tarde, recusando-se a parar de anunciar o evangelho, mesmo sob ameaça de prisão e espancamento pelas autoridades; ou, ainda, como conta a tradição extrabíblica, enfrentando o martírio, pedindo para ser crucificado de cabeça para baixo, por não se considerar digno de morrer como seu Senhor; não acredita tratar-se do mesmo homem, outrora tão hesitante.
Na verdade, não o era. O discipulado com Jesus e a unção do Espírito Santo haviam feito dele uma verdadeira rocha!
É a consciência dos direitos totais de Deus sobre a vida das pessoas que livra o líder da usurpação e da tentação de tornar-se um ídolo para seus discípulos.
LÍDER E NÃO GURU
Lembro-me de um episódio ocorrido com um casal de discípulos da nossa equipe. Quando chegaram à igreja estavam muito maltratados pelo mundo, com grandes feridas na alma. Ela, mulher sempre muito “despachada”, chocou-me na
primeira vez que conversou comigo. Entrou no meu escritório e disse: “Pastor, comecei a frequentar a sua igreja e tenho gostado muito do que você prega, mas não confio nem um pouco em você!” E arrematou: “Tem muito charlatão por aí”…
Eu, respirando fundo para assimilar o golpe, respondi: “De fato, você não pode confiar em mim. Afinal, ainda não me conhece. Mas fique aí, observe a minha vida, minha família e investigue quem eu sou. Um dia você vai confiar…”
O processo de conquista nesse caso não demorou muito. Ela e seu marido logo tornaram-se verdadeiros discípulos, e o que era desconfiança deu lugar a uma relação de paternidade. Anos depois, este mesmo casal, já líderes na igreja, estava diante de uma decisão que afetaria profundamente suas vidas. Ele tinha uma proposta de trabalho para mudar-se de nossa cidade. Financeiramente era vantajoso, mas seria a vontade de Deus? Procuraram-me como bons discípulos para compartilhar a situação e orarmos juntos. Porém, uma palavra daquela irmã acendeu os alarmes em meu coração. Ela disse: “Pai – é assim que me chama hoje, embora esse não seja um costume entre meus discípulos – nós estamos diante desta decisão e o que você nos falar tomaremos como direção de Deus”.
Eu compreendi sua necessidade de ajuda e a extrema confiança que tinha em mim, agora, mas notei que estava passando do ponto saudável. Então respondi: “Queridos, eu sou o pastor e discipulador de vocês, mas nunca serei o seu guru. Se Deus me der uma palavra, certamente compartilha rei, mas estou aqui para ajudar vocês a orar e discernir a direção do Senhor e não para substituí-Lo em suas vidas”. Assim terminamos nossa conversa pedindo uma direção para aquele momento, coisa que o Espírito trouxe dias depois, gerando convicção, em seus corações, do que fazer.
Entendo que um fazedor de discípulos deve ser canal profético para a vida dos que o seguem e até mesmo que ele tem a responsabilidade de perceber a vontade de Deus para muitos aspectos de suas vidas. Haverá momentos em que terá que despertá-los para esta vontade. Nunca me furtei a isso. Porém, o cuidado para não o fazer levianamente e
para não manipular pessoas de acordo com percepções ou interesses puramente humanos, deve ser extremo.
A palavra de um líder pode desviar alguém do plano de Deus para sempre e estragar sua vida. Eu já vi isso acontecer mais de uma vez…
NÍVEIS DE PALAVRA
Sabedor desse perigo e conhecedor da propensão que muita gente tem de assumir ídolos que as substituam na responsabilidade de ouvir a voz de Deus, costumo classificar o nível de palavra que estou dando aos meus discípulos, especialmente quando eles estão diante de decisões importantes na vida.
O primeiro nível é o da “opinião” Quando dou minha opinião, ela não tem peso e nem profundidade significativos.
Não é fruto de uma convicção e tem, apenas, o objetivo de provocar uma reflexão; propor uma possibilidade. De uma
opinião minha, qualquer pessoa pode discordar frontalmente, inclusive um discípulo.
O segundo nível é o do “conselho”. Nele, há reflexão, experiência e princípios envolvidos. Quem o ouve, precisa considerá-lo seriamente, embora tenha o direito de questioná-lo, mas a um conselho, espero que um discípulo leve muito a sério e entenda que o ignorar será um grande risco.
O terceiro nível de orientação que dou a alguém é o que classifico como “palavra de Deus”. Aqui, o que eu espero do discípulo é obediência. Aquilo que está claro na Bíblia não é para ser discutido e, muito menos, ignorado. Mesmo assim, um discipulador consciente reconhecerá que, em muitos temas, o que está escrito pode ser interpretado de formas diferentes, e aí, o discípulo tem que assumir o risco de divergir.
Ao me referir à Palavra de Deus, falo das Escrituras, da sã doutrina. Se alguém, sob minha liderança, compartilhar o desejo de desfazer seu casamento, por dificuldades esteja enfrentando na comunicação, por exemplo, ouvirá de mim uma negativa intransigente. Se a Bíblia não diz que casamentos podem acabar por incompatibilidade de gênios, entre os meus discípulos não haverá quem o faça. Afinal, a Palavra de Deus é nossa base inquestionável.
Bem, estou falando do que está nas Escrituras Sagradas, mas há também o aspecto místico do que podemos chamar de palavra de Deus. Um discipulador muitas vezes pode e deve ser canal profético, transmitindo uma direção que percebe do Espírito. Nesse sentido, deve fazê-lo com ousadia e temor, transferindo ao discípulo a responsabilidade de provar aquela palavra diante de Deus, pois, como diz Paulo,
“em parte conhecemos, e em parte profetizamos”
Toda profecia tem o elemento humano e, por isso, deve ser posta à prova, porém nunca desprezada (conf. I Tessalonicenses 5:20).
SERVIR ATRAVÉS DO DISCIPULADO
Tem sido muito saudável fazer discípulos sobre estas bases, ao longo dos anos, em meu ministério. Nunca me escondi da tarefa de liderá-los e guiá-los pelo caminho. Porém, sempre tenho procurado fazê-lo de tal maneira que não seja eu a determinar o rumo, mas o Senhor. A vários deles, justamente quando estavam maduros, após grande investimento da minha parte, quando mantê-los ao meu lado me era muito conveniente, o Espírito requisitou para a obra missionária.
Não tivesse eu a consciência de que, embora sob meus cuidados, não eram meus, e sim do Senhor, decidi ria segurá-los comigo. Agindo assim, eu me tornaria culpado, por impedir que cumprissem o desígnio do coração de Deus.
Há uma grande diferença entre o líder que quer servir-se do discipulado e o líder que quer servir através do discipulado. Um quer ser destino, o outro quer ser ponte. O primeiro busca subserviência, o outro oferece inspiração.
Quando Jesus devolveu ao Pai os discípulos que a Ele pertenciam, agora amadurecidos pelo Seu investimento, não
nos deixou outra alternativa. A tarefa do discipulado só pode ser cumprida com excelência por líderes-servos que dão suas vidas para formar e entregar a Deus aqueles que são de Deus.
(Extraído do livro “O Fazedor de Discípulos“, de Danilo Figueira)