A carta de Paulo a Filemom é digna de ser examinada sob a ótica da Palavra da Reconciliação. Assim como temos responsabilidade de apregoar aos homens a reconciliação com Deus, também devemos promover reconciliação entre os próprios homens.
Há três personagens em evidência nesta carta: Filemom, Onésimo e o próprio Paulo.
Filemom era amigo e filho na fé de Paulo, além de destinatário da carta. Seu nome significa “afeiçoado”, o que leva a concluir – juntamente com o conteúdo da carta – que se tratava de alguém que facilmente alcançava carinho das pessoas e sabia como retribuir por aquilo que recebia. No relato bíblico, Filemom foi quem sofreu dano, quem foi prejudicado. Onésimo foi o pivô da história. Paulo escreveu em favor dele – um escravo fugitivo, causador da ofensa, claramente culpado. Paulo intercedeu para que Filemom o recebesse de volta e o perdoasse.
Paulo, o apóstolo dos gentios, assume o papel de reconciliador – e ele certamente compreendia muito bem o significado das palavras do nosso Senhor:
"Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus."
O apóstolo se identifica como prisioneiro de Cristo, lembrando a Filemom que a distância entre eles se devia ao fato de Paulo estar na prisão por pregar o Evangelho. Na introdução da carta já descreve o vínculo que havia entre eles:
"Paulo, prisioneiro de Cristo Jesus, e o irmão Timóteo, ao amado Filemom, que é também nosso colaborador, à igreja que se reúne em sua casa, à irmã Áfia e a Arquipo, nosso companheiro de lutas. Que a graça e a paz de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo estejam com vocês. Dou graças ao meu Deus, lembrando sempre de você nas minhas orações, porque tenho ouvido falar da fé que você tem no Senhor Jesus e do seu amor por todos os santos. Oro para que a comunhão da sua fé se torne eficaz no pleno conhecimento de todo o bem que há em nós, para com Cristo. Pois, irmão, o seu amor me trouxe grande alegria e consolo, visto que o coração dos santos tem sido reanimado por você."
Filemom era uma pessoa amorosa e hospitaleira e demonstrava isso a todos . Por isso Paulo também age assim, de forma carinhosa com Filemom, ao rogar por Onésimo – um escravo que não apenas havia fugido, mas, certamente , também causara prejuízos.
O que temos aqui é mais do que mera psicologia ou política de bons relacionamentos. Trata-se de um direcionamento do Espírito Santo a Paulo não somente para resolver um problema de seus dias, mas também para registrar exemplo e referência a todos os cristãos ao longo da história da Igreja.
O pedido por restauração do relacionamento é claro e direto:
"Pois bem, ainda que eu sinta plena liberdade em Cristo para ordenar a você o que convém ser feito, prefiro, no entanto, pedir em nome do amor, sendo o que sou, Paulo, o velho, e agora também prisioneiro de Cristo Jesus. Faço um pedido em favor de meu filho Onésimo, que gerei entre algemas. Antes, ele era inútil para você; atualmente, porém, é útil, para você e para mim. Eu o estou mandando de volta a você — ele, quero dizer, o meu próprio coração. Eu queria conservá-lo comigo, para que ele me servisse em seu lugar nas algemas que carrego por causa do evangelho. Mas não quis fazer nada sem o seu consentimento, para que a sua bondade não venha a ser como que uma obrigação, mas algo que é feito de livre vontade. Talvez ele tenha sido afastado de você temporariamente, a fim de que você o receba para sempre, não como escravo, mas, muito mais do que escravo, como irmão caríssimo, especialmente de mim e, com maior razão, de você, quer como ser humano, quer como irmão no Senhor. Portanto, se você me considera companheiro, receba-o como receberia a mim."
Esta epístola relata uma história de restauração de laços. Ao escrever ao seu amigo, Paulo foi movido por um único sentimento: promover reconciliação entre Filemom e Onésimo. A mensagem dada a Filemom podia ter outro tom: “Enquanto estou na prisão, você devia estar servindo-me, mas não está. Contudo, Onésimo, que era seu escravo e fugiu (e está em falta com você, precisando de reconciliação), está servindo-me em seu lugar…”. Certamente Onésimo ainda não era um crente quando fugiu, pois Paulo disse que “o gerou entre algemas”, ou seja, lá mesmo na prisão.
Naqueles dias, a escravidão era muito forte no Império Romano. Alguém podia tornar-se escravo por diversas razões: nascer na condição de filho de escravos e, assim, pertencer ao senhor de seus pais; devido à pobreza (familiares eram vendidos para arrecadar dinheiro); como consequência de um roubo, que culminara em prisão e escravidão do culpado.
Não sabemos, com certeza, o que fez com que Onésimo assumisse tal condição, mas sabemos que ele teve um encontro com Cristo e sua vida foi transformada. Ele se tornou uma nova criatura, e as coisas velhas ficaram para trás. Essa mudança é evidente na seguinte afirmação de Paulo a Filemom: “Antes, ele era inútil para você; atualmente, porém, é útil, para você e para mim.” (v. 11). Paulo escolheu propositadamente as palavras, porque o nome Onésimo significa “útil”.
Antes da transformação, Onésimo demonstrou ser um escravo rebelde, além de que, provavelmente, roubou a Filemom, já que Paulo mencionou um possível prejuízo. A lógica faz entender que, se aquele homem conseguiu chegar a Roma, onde Paulo estava preso, então conseguira algum dinheiro ou forma de pagamento de suas despesas – coisa que um escravo normalmente não possuía:
"E, se ele causou algum dano a você ou lhe deve alguma coisa, ponha tudo na minha conta. Eu, Paulo, de próprio punho, escrevo isto: Eu pagarei. É claro que não preciso dizer que você me deve a própria vida. Sim, irmão, que eu receba de você, no Senhor, este benefício. Reanime o meu coração em Cristo. Certo, como estou, da sua obediência, eu escrevo a você, sabendo que fará mais do que estou pedindo."
Agora tente imaginar Filemom como “afeiçoado” e dócil. Com o histórico de virtudes descrito por Paulo; deve ter sido “um bom senhor”. No entanto, ainda assim, Onésimo o roubou e fugiu.
Acredito que essa história deixou mágoas e feridas. Deixou no ar um cheiro de ingratidão. Não era o que Filemom esperava colher da parte de Onésimo! Por trás de tudo, vemos a mão soberana de Deus. Onésimo teve um encontro com Cristo naquelas condições. Aparentando ser uma grande coincidência, a pessoa que o conduziu ao Senhor foi justamente um conhecido, um amigo de seu senhor! Paulo se tornou, ainda, seu discipulador!
Imagino que muitas coisas foram tratadas na vida de Onésimo – Paulo não deve ter começado pela necessidade de reconciliação. Quando escreveu a Filemom, já criara um relacionamento dele próprio, enquanto discipulador, com Onésimo. Há evidências de que existia um processo de tratamento e a maturidade já começara a brotar: quando Paulo disse que Onésimo se encontrava “servindo em amor” é porque ele não estava lá na condição de escravo, e sim por livre e espontânea vontade de servir. O próprio Onésimo manifestou o desejo de voltar e reconciliar-se com seu senhor, muito embora não tivesse condições de restituir os danos causados. Isso é evidência de transformação de vida! Depois de haver fugido e alcançado liberdade, ainda que de forma ilegal, Onésimo podia não querer mais voltar a ser escravo, sob hipótese alguma. Mas ele aprendera um princípio, o qual seu discipulador costumava ensinar:
"Pois quem foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto que pertence ao Senhor. Do mesmo modo, quem foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo"
Pelo estímulo do amor de Deus em seu coração, Onésimo voltou a ser escravo. Por amor, passou a servir ao apóstolo Paulo. Posteriormente, dispôs-se a voltar a Filemom. Ele entendeu que, mesmo havendo alcançado liberdade natural, agora era um escravo de Cristo – de Seus ensinos e ordenanças.
PRATICANDO A RESTITUIÇÃO
Perceba algo: até mesmo reconhecendo que Onésimo havia sido transformado e perdoado por Deus, Paulo não ignorou que restavam pendências a corrigir. A transformação não remove a responsabilidade de consertar o que fizemos de errado no passado. Não basta agir corretamente da conversão em diante; é necessário resolver as “coisinhas” que ficaram para trás também. O apóstolo não promoveu somente a reconciliação, mas também a restituição. Esta era uma ordenança da Lei Mosaica: a pessoa devolvia o que roubou e ainda acrescentava uma indenização.
"Zaqueu, por sua vez, se levantou e disse ao Senhor: — Senhor, vou dar a metade dos meus bens aos pobres. E, se roubei alguma coisa de alguém, vou restituir quatro vezes mais. Então Jesus lhe disse: — Hoje houve salvação nesta casa, pois também este é filho de Abraão. Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido."
Da mesma forma como Paulo pediu perdão em favor de Onésimo, ele também podia ter pedido o perdão da dívida. Não o fez, pois conhecia o princípio a ser praticado, e não ignorado. Quantos crentes de hoje precisam aprender essa verdade! Antes da entrega a Jesus, muitos deixaram atrás de si um rastro de injustiças. O problema é acharem não ser necessário fazer mais nada a respeito, já que Jesus os perdoou. Não é bem assim. Há, sim, situações em que a restituição é impossível. Entretanto há condições em que, no mínimo, uma reconciliação ou um pedido de perdão já faria muita diferença. Tenho um amigo que, antes de converter-se, era assaltante de carros e de bancos. Ele jamais poderá restituir tudo o que roubou antes de conhecer a Cristo. Contudo tenho muitos outros conhecidos que admitiram que a restituição estava ao seu alcance e a praticaram. Um deles foi ressarcir, a uma antiga vizinha, as galinhas que roubara em sua infância. Além de livrar-se do peso que carregava, ainda pôde evangelizar aquela mulher, a qual ficou impressionada com a sua atitude. Há muitas pessoas por aí presas a situações do passado, mas que poderiam conhecer a liberdade praticando restituição.
Texto extraído do livro “A Palavra da Reconciliação”
Autor: Luciano P. Subirá. É o responsável pelo Orvalho.Com – um ministério de ensino bíblico ao Corpo de Cristo. Também é pastor da Comunidade Alcance em Curitiba/PR. Casado com Kelly, é pai de dois filhos: Israel e Lissa.